Andróides sonham com trabalhos elétricos?
A IA muda tanto assim a realidade do que tem sido a criação de conteúdo pra internet?
Parte 1: contexto, desabafo e o que que é IA
Nas últimas semanas, no maior e mais irrelevante microcosmo do planeta - o Twitter, hoje apenas o brinquedinho de um adulto mimado - se falou muito sobre IA e ChatGPT. Muitos usuários já cumpriram seu dever de promover desserviço com alarmismos e interpretações à moda caralha de como um chatbot baseado em NLP funciona.
Tivemos um jornalista falando besteira, e um usuário retuitando esse post original, criticando devidamente a besteira que o jornalista estava falando, mas adicionando uma outra camada de besteira no lugar. No fim o que ficou provado é que não importa o quão boa será a tecnologia para encontrar informação se teimarmos o suficiente pra reconhecer que não sabemos muito sobre alguns assuntos.
Pesquisar no ChatGPT pode levar a informações erradas, de acordo com a própria OpenAI:
O ChatGPT não está conectado à internet e pode ocasionalmente produzir respostas incorretas. A ferramenta possui uma limitação de conhecimento sobre o mundo a partir do ano de 2021, e pode também ocasionalmente produzir instruções danosas ou conteúdos enviesados.
Recomendamos checar se as respostas do modelo estão apuradas ou não. Se você encontrar uma informação incorreta, por favor providencie feedback utilizando o botão de “joinha pra baixo”.
Então tem isso.
Quando trabalhei com experiência de usuário em chatbots dentro de uma empresa brasileira que faz exclusivamente isso para clientes nacionais e internacionais, aprendi um pouco sobre NLP (ou “processamento de linguagem natural”, em português), uma área dentro da Inteligência Artificial.1 A grosso modo, serve como um “tradutor” que permite uma máquina entender a linguagem natural - que é aquela que utilizamos entre nós, hã, humanos. Não sou nenhum especialista no assunto como meus colegas que se dedicavam exclusivamente à Inteligência Artificial, mas aprendi o suficiente pra saber que uma IA não consegue inventar nada por uma questão lógica de que IAs trabalham com padrões.
Nem todo chatbot possui NLP. Existem bots mais triviais que funcionam somente a partir de regras, e se assemelham àqueles “livro jogo” e “escolha a sua aventura”, que você é apresentado a um cenário com número X de rotas, e precisa necessariamente escolher uma dessas rotas. E existem os chatbots com NLP que conseguem interpretar o que você diz, e variam na taxa de sucesso de acertar e responder adequadamente de acordo com o quão avançados estão no treinamento. E esse treinamento é feito e aplicado por seres humanos, geralmente especialistas em linguística e tecnologia.
Treinar uma IA dá trabalho. Requer inúmeras iterações (o ChatGPT é gratuito para usarmos porque cada uso nosso é uma iteração e uma chance de melhorar a ferramenta), tempo e gente.
São esses ‘engenheiros’ que analisam os inputs dos usuários (nós) e as respostas do chatbot, afinando a tecnologia para que ela reconheça padrões de escrita, rotule as intenções do usuário agrupando frases e termos que ajudem a significar o que o usuário quer (ele está pedindo ajuda? Afirmando algo? Reclamando? Sugerindo?), criando estruturas de desambiguação para ajudar a IA a diferenciar contextos e assim em diante. Enfim. Treinar uma IA dá trabalho. Requer inúmeras iterações (o ChatGPT é gratuito para usarmos porque cada uso nosso é uma iteração e uma chance de melhorar a ferramenta), tempo e, como você pode ver, gente.
Parte 2: o que fazemos de diferente hoje? O que faremos de diferente amanhã?
Com isso chegamos à pergunta de milhões, que é como isso vai mudar nossas vidas?
O problema de falar de IA sem entender como ela funciona é criar cenários alarmistas em que você para de reconhecer o papel do ser humano na criteriosa tarefa de calibrar um robô. Para além do aspecto técnico de construção, há um fator ético crucial no desenvolvimento dessas ferramentas. Há pretextos legais sobre propriedade intelectual para se pensar dentro da área jurídica.
Por exemplo, se uma empresa deixa de contratar um redator e passa a utilizar uma ferramenta dessas e algo sai errado ou problemático, ela vai fazer o quê? Provavelmente, designar um funcionário para servir como “editor”, que será o responsável por aquele conteúdo gerado. Ou seja, nesse cenário, a necessidade da peça humana entre a geração de um conteúdo e a publicação desse conteúdo não deixaria de existir. E é um cenário interessante para uma empresa na eventualidade de precisar “culpar alguém por algo”, certo?
A inclusão das IAs no dia a dia e nas cadeias produtivas me parecem, em um primeiro momento, criar mais áreas do que eliminar. Elas facilitam trabalhos ‘braçais’ que já fazemos hoje, deixando margem para concentrarmos nossos esforços em outras coisas. E é nesse ponto que eu queria chegar nesse texto, portanto se você não desistiu até aqui, puta que pariu, meus parabéns, porque tudo que eu escrevi acima era pra chegar exatamente aqui, então sinta-se uma pessoa muito privilegiada frente aos idiotas impacientes.
Criar conteúdo pra internet hoje é seguir uma série de arbitrariedades sem questionar muito para poder ser contemplado da melhor maneira possível a um algoritmo. Isso serve para tudo que a internet se tornou, porque em algum momento lá atrás entendemos como sociedade que só frequentaríamos os espaços disponibilizados e fomentados por grandes empresas.
Inconscientemente resolvemos que queríamos uma personalização que não fosse criteriosa de acordo com os nossos termos, mas sim com os de uma ferramenta de pesquisa.
Agora, se o seu site não leva em questão as palavras-chave e os assuntos mais buscados pelas pessoas que frequentam o Google, ele não será indexado com relevância, e ninguém fora a sua mãe vai conseguir chegar ao seu site ou a qualquer coisa que você publica. Nas redes sociais, impera uma lógica que em essência é a mesma.
Não é à toa que a gente vê uma porrada de criadores de conteúdo se queixando de ao que eles “precisam se submeter”. Você precisa criar conteúdos escalonáveis para deixar o seu perfil em evidência e eventualmente receber alguns centavos por isso.
Então eu pergunto a você: qual a diferença de um conteúdo gerado por uma IA, que faz esse conteúdo a partir de padrões cada vez mais aprimorados, para uma pessoa que precisa fazer um conteúdo que precisa cumprir determinados padrões?
Quando foi a última vez que você achou algo verdadeiramente revelador no Google? O que te leva a seguir alguém no Twitter? Seguir um autor no Medium ou aqui mesmo no Substack? A ouvir sempre determinado podcast e o que o pessoal de lá tem a dizer?
A verdade é que a internet é formada por conteúdos que não seguem como premissa a qualidade do conteúdo em si, mas sim as boas práticas e padrões que garantam que ele cumpra os requisitos para aparecer ao maior público possível.
Pra mim, essa discussão é mais pertinente do que as discussões de “o que que a IA vai substituir?”. Ela pode “automatizar”, ou ao menos tornar muito mais rápido, tudo aquilo que é mais engessado na criação de conteúdo de hoje.
Se você quiser saber mais como funciona a lógica por trás da IA, recomendo os podcasts do Dragões de Garagem sobre o assunto: 92, sobre Inteligência Artificial; 193, sobre Ética na Inteligência Artificial; 261, sobre ChatGPT.
O que você achou desse conteúdo?
Esse texto gerou uma crítica interessante que me foi enviada como feedback, que é essa:
"Você diz que existe uma discussão sobre a IA que, na sua opinião, é mais interessante do que discutir sobre 'o que ela vai substituir', sendo que o mercado já começou a substituir e testar essas hipóteses sozinhos (vide os conteúdos de livros escritos por IA sendo vendidos na Amazon, NFTs sendo criados pelo MidJourney e vendidos no OpenSea), isso não é algo meramente interpretativo. O mundo está mudando e, com ele, devemos incentivar às pessoas a enxergarem as oportunidades e se preocuparem com a necessidade de adaptação, não a tentar 'acalmá-las' dizendo que vai ficar tudo bem, porque não vai."
Acho essa crítica interessante, como disse, mas principalmente porque ela considera que o meu texto tem qualquer teor de "positivo", que diz que "vai ficar tudo bem". Acho uma interpretação bastante equivocada porque não sei onde fiz exatamente um juízo de valor, e principalmente na segunda metade do texto deixo claro ao dizer que a precarização do trabalho já ocorre independente do avanço da IA. Ou seja, eu não acho que vai ficar tudo bem porque eu acho que nunca esteve tudo bem. Achei, sinceramente, curiosa essa interpretação positiva.
O que eu escrevo ali, com todas as palavras, é que tudo que consumimos hoje na internet é controlado, editado e gerenciado por grandes corporações, e que nós temos (enquanto criadores) que nos adequar o melhor possível a esse formato. "Criar conteúdo pra internet hoje é seguir uma série de arbitrariedades sem questionar muito para poder ser contemplado da melhor maneira possível a um algoritmo. Isso serve para tudo que a internet se tornou, porque em algum momento lá atrás entendemos como sociedade que só frequentaríamos os espaços disponibilizados e fomentados por grandes empresas."
E o que produzimos enquanto criadores não é tão diferente do que o que uma IA produz porque precisamos, para ter algum alcance, seguir formatos específicos impostos pelo algoritmo da rede. E que, na lógica de produzir com isso em mente, realmente o trabalho humano não é nem mesmo necessário porque se trata de cumprir determinados requisitos não relacionados à qualidade. E isso é o que IA faz muito bem. Tanto o trabalho humano não considerado pelas empresas como necessário que ele é altamente precarizado.
Acho que quem trabalha com escrita como eu já deu uma espiadinha naqueles sites de "terceirização de artigos", e o quão mal pagos eles são. É a epítome da precarização do trabalho. As IAs não vieram para impor isso, isso já existia até como consequência da dominação dos espaços da internet por grandes corporações. A automatização dessa lógica de criação de conteúdo me parece ser evidente. Ou seja, a precarização em si é algo muito, muito anterior do que IAs como o ChatGPT. Não é a tecnologia que tira o seu trabalho, é a precarização.
Sobre os exemplos práticos citados na crítica, eu discordo que eles sejam indícios de qualquer coisa. Não existe crivo qualitativo pra publicar um ebook na Amazon exceto aqueles que a própria Amazon coloca lá. Cumprindo-os, você pode colocar à venda. E colocar à venda é fácil, difícil é fazer vender (você já comprou um livro gerado por uma IA?) Entra aí o ponto que comento sobre a percepção da qualidade de um conteúdo de IA. Se alguém me apontar uma boa história inteiramente escrita e editada por uma IA, sem qualquer intervenção humana na concepção, aí dá pra começar a entender esse potencial como além de especulação.
E sobre NFTs, pô, só se fala em outra coisa, né? NFTs fizeram lá o seu nicho com aqueles idiotas de sempre, amplamente rejeitadas até onde sei no mundo real. Acho que arte de IA e NFTs tem mesmo tudo a ver e se merecem demais, mas não consigo entender como exemplo pra qualquer outra coisa.